A vida de um professor, negro, vítima de violência policial, narrada por um filho que, ainda em luto, busca compreender suas origens e processar a perda do pai.
Confira a resenha do livro: O Avesso da Pele, de Jeferson Tenório publicado pela editora Companhia das Letras em 2020.
Quando o absurdo vira rotina
O conflito descrito na sinopse — por mais absurdo que seja — nos é comum, o vimos com frequência nas manchetes dos jornais: um homem negro morto durante uma abordagem policial.
A questão da violência policial no Brasil é antiga, suas causas são diversas e complexas, indo desde falta de treinamento e estrutura adequadas aos profissionais que se arriscam e sofrem pressão nas ruas; até seu funcionamento violento, que usa o poder da farda e o uso de armamento, para fazer justiça com as próprias mãos, em julgamentos baseados em estereótipos, valores pessoais e preconceitos.
Sendo esse último, destinado frequentemente às classes mais baixas, compostas, em sua maioria, por pessoas negras, que, em um país estruturalmente racista, sofrem diariamente microviolências em forma de desconfiança, ofensas em tons de brincadeira, desumanização e desindentidades.
Na narrativa, escrita por Jeferson Tenório, o filho Pedro, enquanto vive o luto dessa perda trágica, começa a relembrar toda a vida do pai, entrelaçando em suas memórias a vida de sua mãe, seus avós e consequentemente a sua.
“Esta história é ainda a história de uma ferida aberta. É uma história para me curar da falta daquilo que você, repentinamente, deixou de ser”.
As várias histórias de vida, contadas a partir dessa perda
Ao conhecer a história de vida dos personagens que passaram pela vida de Henrique, o professor assassinado, podemos sentir um pouco da difícil e injusta realidade vivenciada por essas pessoas, apenas ou agravadas por serem negras.
A começar, pelo momento em que elas se descobrem negras: num marco no qual a cor da pele se torna uma questão, deixando de ser natural para ganhar outro peso em suas vidas. Exigindo que se comportem diferente, mantendo o estado de alerta em diversas situações, como se sua existência e atitudes precisassem sempre ser justificáveis.
“A vida simplesmente acontecia e você simplesmente passava por ela. Mas, quando o professor Oliveira contou para sua turma sobre Malcom X, quando vocês conversaram sobre Martin Luther King, quando pela primeira vez você ouviu a palavra “negritude”, o seu entendimento sobre a vida tomou outra dimensão, e você se deu conta de que ser negro era mais grave do que imaginava”.
Acompanhamos também o cotidiano de pessoas negras em meio a uma sociedade racista: insultos justificados como brincadeira, desconfiança e menosprezo são só algumas das microviolências enfrentadas pelos personagens que, na obra, moravam em Porto Alegre/RS mas, sem dúvidas, acontecem em qualquer lugar.
Mesmo aqueles que conseguem estudar e construir uma carreira se veem constantemente questionados e tendo que provar seu valor. Levando uma vida envolta em estresse, constante estado de atenção e aprendendo desde cedo regras básicas para sua sobrevivência: não sair sem documentos, não sair correndo na rua, não fazer movimentos bruscos em uma abordagem policial.
“Então, no início da rua, você viu uma viatura com as sirenes tocando, e àquela altura da sua vida, aos catorze anos, você já havia aprendido que aquela visão era um problema, não que você tivesse consciência de que a polícia te abordava, porque você era negro, mas sua experiência já te dizia para se manter longe das viaturas”.
Outro aspecto marcante na obra são as relações familiares. Os pais de Pedro, vieram de uma criação conturbada, viveram situações difíceis e nem sempre tiveram o apoio e estruturas seguras necessárias durante sua infância e juventude.
Por consequência, ambos enfrentaram na vida adulta questões de insegurança, baixa autoestima, dependência emocional e uma grande dificuldade em tomar decisões. Construindo assim, relações amorosas sofridas, até abusivas, numa sequência de relacionamentos que não deram certo.
Talvez, porque quando falta amor e respeito por si, seja difícil se achar merecedor de receber isso do outro.
“Vocês eram apenas duas pessoas quebradas. Cada um com seus casos. Cada um buscando uma escora. O amor como muleta. Naquele momento, a vida já havia tirado tanto, que vocês achavam injusto que amor não pudesse servir como amparo”.
Por fim, mas não menos importante, outra realidade bastante dura que conhecemos é a do professor da rede pública: “Você simplesmente não sabe como sobreviveu à escola, primeiro como aluno, depois como professor” (fala do filho ao pai professor).
Num sistema de educação sem estrutura necessária para tornar o ambiente e as aulas atrativas, professores precisam de criatividade, automotivação e muito esforço para realizar seu trabalho.
Enfrentando diariamente o descaso ou desinteresse de alguns e a falta de condição para assistir à aula - por estar com fome, estar enfrentando problemas familiares, ou já envolvidos com drogas ou crimes - de outros.
Contudo, mesmo diante da difícil condição dos alunos e da escola, o professor não desacredita no poder da educação e dos livros e insiste no poder de transformação através de uma boa história: “Até o fim você acreditou que os livros poderiam fazer algo pelas pessoas. No entanto, você entrou e saiu da vida, e ela continuou áspera”.
Mas, a realidade, como sempre, se impõe e apesar de pequenas vitórias, se sabe que o problema é muito, muito maior e mais complexo e que não serão resolvidos apenas com livros e histórias...
“Anos e anos acreditando que você estava fazendo algo de significativo, mas vieram outros anos e anos e soterraram suas expectativas. A precariedade da escola venceu, e você estava cansado”.
Alteridade possível por meio da ficção
A ficção pode nos colocar em outra realidade, conseguimos, a partir de narrativas, conhecer outros pontos de vista, outras formas de existir, outras vivências.
Em uma aula realizada no canal da Lilia Schwarcz, Jeferson Tenório, diz acreditar que a literatura nos dá a oportunidade de aprendermos que “o nosso mundo é só uma parte do mundo”. Algo que ele consegue fazer muito bem em O Avesso da Pele, ao não nos dar outra alternativa a não ser sentir a pressão e preconceitos que envolvem a existência negra na nossa sociedade.
Uma dura e antiga realidade, que Tenório busca não só compartilhar, mas reivindicar o direito à dignidade, identidade e pertencimento dos personagens envolvidos. Ao contar a história desse professor negro violentamente morto pela polícia, ele humaniza muitas manchetes de jornal.
Henrique, poderia ser qualquer uma das vítimas que vimos no noticiário essa semana, e que assim como o personagem, tinham filhos, trabalho, amigos, sonhos. Permitindo assim, que a vítima deixe de ser um número e tenha uma vida, pertença a um grupo - de sua família, amigos, trabalho — e sua perda tenha outro peso.
“Ele (o livro) justamente traz uma narrativa que procura restituir uma subjetividade perdida, porque nada melhor do que frustrar o estado racista, do que conferir novamente uma existência, que não é reconhecida em função da cor da pele”. Jeferson Tenório, em vídeo para o canal Arte 1 em Movimento.
Prêmio Jabuti e estrutura narrativa única
Não bastasse a força e a importância da história de Pedro e sua família, O Avesso da Pele também apresenta uma experiência de leitura única: com um narrador que é também um personagem, que fala em primeira pessoa.
Seus relatos — ou memórias — são apresentados em blocos imensos de texto, num fluxo contínuo de pensamentos, colocando o leitor na cabeça desse filho em luto.
Outro presente nesta obra são as várias referências de livros, músicas e filmes, distribuídos de forma orgânica pela história.
O título fala do avesso, pondo o lado de dentro em evidência para lembrar que somos além da pele. Somos o que pensamos, o que sentimos, o que está dentro.
“Você sempre dizia que os negros tinham de lutar, pois o mundo branco havia nos tirado quase tudo e que pensar era o que nos restava. É necessário preservar o avesso, você me disse. Preservar aquilo que ninguém vê. Porque não demora muito e a cor da pele atravessa nosso corpo e determina nosso modo de estar no mundo”.
Ler o Avesso da Pele é ainda muito necessário num país estruturalmente racista, que precisa se esforçar e desenvolver consciência para realizar a justa reparação histórica com negros e negras do nosso país.
Que essa obra chegue cada vez mais longe e que essa leitura afete muitas pessoas. Deixo aqui o link para adquirir o livro e ainda ajudar o Raízes: O Avesso da Pele, na Amazon.
Resenha do Livro: O Avesso da Pele, de Jeferson Tenório
Obrigada por ler! 🤓
Espero que tenha gostado e se inspirado a ler o livro.
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Nos vemos no próximo texto 🥰
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