Um lugar em que a sociedade se aliena através das telas e os livros são condenados por fazer as pessoas pensarem. Distopia ou realidade?
Confira a crítica literária a partir da obra Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, publicado pela editora Biblioteca Azul em 2003 e a censura aos livros no Brasil.
Fahrenheit 451 foi publicado pela primeira vez em 1953, quando o escritor Ray Bradbury imaginou a sociedade num futuro em que as telas haviam dominado o entretenimento e os livros eram proibidos. De certa forma, 71 anos depois, podemos dizer que o autor não errou tanto assim em suas previsões.
A distopia, gênero que retrata sociedades vivendo em realidades extremas de opressão — também chamada antítese da utopia — apresenta uma sociedade que vive mais ou menos pelos anos 2000. Presumimos isso pela passagem em que o personagem principal diz: "Desde 1990, já fizemos e vencemos duas guerras atômicas".
Se de fato a história se passa no século XXI não temos certeza, mas ao analisarmos é possível encontrar algumas semelhanças daquela realidade com a nossa atualidade. A começar pelas telas que na narrativa eram enormes e tomavam conta das paredes das salas. Enquanto em nossa sociedade, os smartphones, computadores e televisores, de fato dominaram o entretenimento e dificilmente largamos deles.
O efeito do excesso de telas, apresentado pelo autor também é bastante certeiro: elas podem deixar as pessoas alienadas em suas bolhas, perdendo a capacidade crítica e reflexiva devido uma grande distorção da realidade. Coincidência será?
Já os livros, que na sociedade de Fahrenheit 451 eram proibidos e sua importância totalmente desprezada, pode ser comparada à precarização com que esse tema é tratado atualmente. A leitura segue sendo pouco incentivada e o preço dos livros só aumenta, impossibilitando o acesso para muitos.
Os poucos incentivos à leitura e ao mercado editorial existentes no país, são frequentemente ameaçados, como é o caso da proposta de taxação de livros que frequentemente volta à pauta dos governantes. Não proibimos ou queimamos livros, mas são tamanhas as dificuldades para acessá-los que o efeito pode ser o mesmo.
Até episódios de censura aos livros temos presenciado nos últimos anos. Algo que muitos pensavam ter ficado no passado, presos a períodos ditatoriais, acontecem em plena luz do dia no nosso país democrático. Recordemos que há 77 anos, em 1945, acabava a Segunda Guerra Mundial, período em que livros considerados inadequados pelos nazistas eram queimados. A leitura livre foi proibida e os livros eram acessados por poucos privilegiados.
Mas a censura aos livros não aconteceu apenas na Alemanha de Hitler. Ao longo da história diversos países ao redor do mundo tiveram a literatura como ameaça, e, portanto, um alvo. Apenas para citar alguns casos: na China, livros anticomunistas ou críticos ao governo foram destruídos; Augusto Pinochet, no Chile, ordenou militares a queimarem livros que fossem considerados subversivos; nos países islâmicos, houve a proibição do livro Versos satânicos do escritor indiano Salman Rushdie, que também acarretou o exílio do escritor.
Esse ano, 2022, a editora Penguin em uma campanha contra a censura que o livro O Conto da Aia de Margaret Atwood, vem recebendo em diversos estados dos EUA, lançou uma edição especial à prova de fogo.
Assista aqui o vídeo da campanha em que a própria escritora aparece tentando incendiar o livro:
A edição utiliza materiais como folha de alumínio, aço e costuras com filho de níquel e será leiloado. A renda vai para a associação de escritores, Pen America, entidade que luta pela defesa da liberdade de expressão.
No Brasil, os livros são censurados desde o período colonial, época em que a população só tinha acesso a eles através das escolas, de ordens religiosas, que dispunham de livros selecionados por padres e professores e aprovados pelo rei, para que então pudessem ser enviados ao Brasil. Os temas dos livros permitidos eram apenas de cunho educativo e religioso.
Com a vinda da família real para o Rio de Janeiro, começaram a surgir redações e editoras ligadas à Coroa. O que contribuiu para uma maior oferta de livros e jornais no país, mas que só eram lidos pela elite, uma vez que a população de trabalhadores rurais e escravos, eram em sua maioria analfabetos e não tinham acesso a livros e a educação. Podemos compreender, que nesse período mais do que censura, tivemos a privação do acesso ao livro.
Já no século XX, devido à sombra dos regimes europeus, qualquer livro ou informação que esclarecesse a condição do trabalhador era considerada apologia a ideologias como o comunismo e, portanto, proibidos. No período do Estado Novo (1937 – 1945) tivemos a criação do INL (Instituto Nacional do Livro) que visava centralizar as publicações de enciclopédias e dicionários, além de gerir o mercado editorial e bibliotecas no país. Detendo, então, o poder de controlar toda a cadeia do livro, criando e impondo a população conteúdos homogêneos que reforçassem o pensamento do governo.
O DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda) criado em 1939 também tinha objetivos claros de censura, conforme descrito na lei de sua criação: (o órgão) "… é diretamente subordinado ao Presidente da República e tem a seu cargo a elucidação da opinião nacional sobre de diretrizes doutrinárias do regime, em defesa da cultura, da unidade espiritual e da civilização brasileiras, cabendo-lhe a direção de todas as medidas especificadas neste Regimento".
Tal órgão era composto por cinco setores: Radiodifusão, Cinema e Teatro, Turismo, Imprensa e Divulgação. Desta última destaco suas funções: a) a elucidação da opinião nacional sobre as diretrizes doutrinárias do regime, em defesa da cultura, da unidade espiritual e da civilização brasileiras; b) interditar livros e publicações que atentem contra o crédito do país e suas instituições, e contra a moral; c) combater por todos os meios a penetração ou disseminação a qualquer idéia perturbadora, ou dissolvente da unidade nacional.
E assim, qualquer irregularidade identificada pelo DIP era encaminhada à Delegacia de Ordem Política e Social (DOPS), responsável por fazer não só apreensões das obras, mas também promover queima de livros, perseguição e prisões de autores, editores e tradutores. Tal órgão também agia por denúncias e como se sabe, foi responsável por inúmeros casos de torturas no período da ditadura, agindo não só contra livros, mas em todos os segmentos culturais.
Anos depois, com o Golpe de 1964 e a implantação da ditadura a censura passou a acontecer de forma mais contundente. Com o objetivo de restringir o livre pensamento e liberdade de expressão, típico desses governos, tivemos a implementação do AI-5, em 1968. O Ato Institucional que fechou o congresso e deu ao governo o poder legislativo, dentre outras coisas, permitia a censura prévia de qualquer obra cultural, que fosse considerada subversiva.
Tal ato, deixou na mão da Polícia Federal a verificação de livros e periódicos, tanto importados como nacionais. E caso identificado algum conteúdo contrário à política nacional ou aos princípios da família, as obras eram proibidas. Marcou esse período a censura prévia de livros, a perseguição de editoras e apreensões em acervos particulares e bibliotecas.
Passados os tempos de obscurantismo da ditadura, acreditávamos estar livres da censura. Entretanto, fatos muito recentes nos lembram que não, estamos apenas vivendo em uma democracia que nos permite ter conhecimento desses casos e agir contra. Como o acontecimento envolvendo a HQ Vingadores, A Cruzada das Crianças, que sofreu uma tentativa de censura pelo então prefeito do Rio de Janeiro Marcelo Crivella, na Bienal do Livro de 2019 que acontecia na cidade.
A justificativa de Crivella era a cena de um beijo gay, exibida no interior do livro, ele pediu o recolhimento das obras para evitar que crianças e adolescentes tivessem acesso a conteúdo inadequado. Na época, o STF proibiu a retirada das obras e escritores protestaram a partir de um manifesto, repudiando o ato e denunciando a tentativa de censura.
Outro caso ocorreu em São Paulo no projeto social que promove a leitura em presídios do estado, chamado Remição em Rede. Lançado em 2018, além de incentivar a leitura ajuda na redução das penas (cada livro lido corresponde a menos 4 dias de prisão). Na época a Funap (Fundação Prof. O Dr. Manoel Pedro Pimentel) ligada à Secretaria Estadual da Administração Penitenciária (SAP), do governo de SP, vetou uma lista de livros selecionados para o projeto, alegando que não eram adequados aos presos e gostaria de substituir as obras por títulos de autoajuda. Dentre as obras censuradas estavam clássicos da literatura como: Crônica De Uma Morte Anunciada, de Gabriel García Márquez, Caderno de Memórias Coloniais, de Isabela Figueiredo, e O Fim de Eddy, de Édouard Louis.
Em 2020, também foram descobertas tentativas de censura nas escolas de Rondônia, onde a Secretaria de Educação, enviou para as escolas uma lista de livros que deveriam ser retirados de suas bibliotecas devido ao seu conteúdo impróprio. Após questionamentos e protestos da comunidade escolar, a Secretaria que está sob a gestão do governador e coronel Marcos Rocha (PSL), recuou.
Nos últimos anos a cultura como um todo foi precarizada, com a falta de investimento e incentivo, dificultando ainda mais o acesso da população. E diante de uma história marcada por censura e repressão, somados aos acontecimentos mais recentes de cerceamento do livro, é necessário atenção para não normalizarmos o absurdo.
Tal qual Guy Montag, personagem principal de Fahrenheit 451, que trabalha para o governo incinerando livros denunciados, com naturalidade, sem questionar. Nunca pensa sobre o porquê da proibição dos livros nem no impacto que eles podem causar. Como a banalidade do mal explicada por Hannah Arendt, ele apenas segue as ordens e não sente responsabilidade ou culpa por seus atos.
Foi a partir de novas amizades — com Clarisse, sua vizinha e jovem professora e com o Sr. Faber, um professor já aposentado — e ao presenciar a morte de uma mulher que se recusou a sair de sua biblioteca incendiada, que ele passa a questionar qual o poder dos livros: "Deve haver alguma coisa nos livros, coisas que não podemos imaginar".
Como uma luz que se acende na escuridão, Montag passa a ver com muita clareza a sua vida, formada por uma rotina monótona, previsível e superficial. As pessoas não conversam, não pensam, não questionam e mesmo suas atividades de lazer são ditadas pelo governo.
Em uma realidade sem autenticidade, as pessoas buscam a alienação e medicamentos para fugir de qualquer sentimento ruim, que poderia antecipar ações de revolta ou inconformismo. População ocupada e com emoções controladas, era o que o governo desejava. E era o que os bombeiros garantiam ao tirar de circulação os livros, objetos capazes de fazer pensar, questionar e refletir, abrindo a mente para outras ideias e realidades.
"Ela não queria saber como uma coisa era feita, mas por quê. Isso pode ser embaraçoso. Você pergunta o porquê de muitas coisas e, se insistir, acaba se tornando realmente muito infeliz".
Na distopia de Ray Bradbury, Montag descobre o mundo dos livros e se deixa transformar por eles. De pessoa alienada e apática com sua realidade, ele se transforma e busca por mudanças em sua sociedade. É incrível acompanhar sua jornada até um final emocionante e fundamentado na esperança de dias melhores.
Já na nossa realidade, mais do que ler e compartilhar nossas experiências literárias, é importante também observar o mercado editorial e as políticas de incentivo à leitura e acesso ao livro. Pois, somente com acesso democrático à literatura é que poderemos manter o desenvolvimento do pensamento crítico, livre circulação de histórias e ideias.
Fahrenheit 451 é um clássico que apresenta um problema, infelizmente, ainda muito atual: a perseguição aos livros. Nós, apaixonados por eles, sofremos em alguns momentos dessa leitura acompanhando a ignorância e destruição de obras. Ao mesmo tempo, vibramos com a transformação de Montag e com as lindas e inspiradoras conversas entre ele e o professor Sr. Faber, acerca do poder dos livros.
Que sejamos cada vez mais arrebatados por histórias assim, que nos fazem pensar e analisar nossa realidade, sob diferentes perspectivas. Conectando-as e refletindo sobre as marcas duras em nosso passado, para podermos cobrar de maneira justa e democrática, que situações assim não se repitam jamais em nossa história.
Se você gostou da resenha do livro, confira abaixo o link para adquirir a obra e outros conteúdos que vão enriquecer ainda mais a sua experiência de leitura:
Link para a compra do livro: Fahrenheit 451, de Ray Bradbury .
Conheça as adaptações cinematográficas da obra:
- Fahrenheit 451 - de François Truffaut, 1966.
A primeira adaptação da obra para o cinema é também a mais fiel ao livro. Confira o trailer aqui.
- Filme Fahrenheit 451 - de Ramin Bahrani, 2018.
Série da HBO Max, apresenta uma sociedade bem mais moderna e tecnológica da pensada por Ray Bradbury, mas que mantém a caça aos livros por bombeiros. Assista ao trailer aqui.
Obrigada por ler! 🤓
Espero que tenha gostado e se inspirado a ler o livro.
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Nos vemos no próximo texto 🥰
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