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Crítica Literária: Maternidades na literatura contemporânea

Atualizado: 1 de mar.

A potência de ler personagens mulheres escritas por mulheres.

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Confira a Crítica Literária: Maternidades na literatura contemporânea, a partir das obras Casas Vazias, de Brenda Navarro publicado pela editora Dublinense em 2022 e Véspera, de Carla Madeira publicado pela editora Record em 2021.


Mulheres na literatura

Houve um tempo em que mulheres eram proibidas de estudar. Tempos depois, foram proibidas de escrever publicamente, as obrigando a adotar pseudônimos masculinos. Mais a frente, mulheres eram livres para escrever seus livros, desde que encontrassem alguma editora que os publicasse. Então, por anos muitas mulheres escreveram, e muito, mas não tinham espaço no mercado editorial.


Na atualidade, é possível considerar que tivemos avanços: temos muitas mulheres escritoras sendo publicadas, muitas sendo reveladas e outras finalmente ganhando seu merecido reconhecimento. Os desafios atuais são consolidar um mercado editorial cada vez mais inclusivo e a divulgação de mulheres escritoras. Para que elas não só sejam publicadas, mas também lidas, que seus textos ecoem e sejam debatidos pelos leitores.


Dentre tantas mulheres que vem ganhando destaque na literatura contemporânea, no Brasil e no exterior, posso citar algumas: Carla Madeira, Brenda Navarro, Aline Bei, Andrea Del Fuego, Natalia Timerman, Mariana Salomão Carrara, Lorena Portela, Han Kang, Camilla Sosa Villada, Pillar Quintana, dentre tantas outras.


Além de estarem sendo lidas e tendo suas obras bastante comentadas, essas escritoras têm em comum o exercício de colocar no papel histórias que retratam a condição da mulher. De uma maneira incomum, elas desconstroem o estereótipo de boa moça, resignada, amorosa e puramente generosa.


Pensando a literatura como textos que buscam representar os fenômenos do seu tempo, nós, leitoras do século XXI, temos o privilégio de ver mulheres contemporâneas contando nossas histórias. Que inventadas ou não, retratam nós mulheres de maneira intimista e honesta, contando os fatos da nossa perspectiva, deixando transbordar todos os sentimentos que carregamos, dos mais nobres aos mais podres.


Desse cenário farto, selecionei dois livros que me tocaram profundamente por retratar, de forma intensa, uma maternidade possível dentro de realidades complexas. São eles: Véspera, de Carla Madeira, e Casas Vazias, de Brenda Navarro.


Maternidades retratadas na literatura contemporânea

Vedina e Custódia, as mães de Véspera e as mães de Casas Vazias, não denominadas pela autora, tocam de uma forma avassaladora. Foi duro acompanhar suas histórias! Nem sempre elas acertaram, tampouco seus desejos, escolhas e atitudes eram admiráveis, mas elas sentiam muito, de verdade.


Personagens comuns, que vivem realidades diversas e agem conforme o que suas experiências lhe ensinaram. Lutam com as armas que tem e nos momentos mais duros, de maior esgotamento e desespero, cometem erros. Alguns deles graves demais para serem reparados, o que as torna ainda mais reais.


"Como se chega ao extremo? Vivendo." Véspera, Carla Madeira

É tão triste e, ao mesmo tempo, tão revolucionário ver pessoas errando com a convicção de estarem certas. Demonstra como podemos ficar cegos em alguns momentos, incapazes de ver ou analisar os fatos por outros ângulos. Momentos em que a emoção toma conta ou em que nossa perspectiva é limitada pela realidade em que estamos.


Em Véspera, Vedina, uma mãe num momento de extremo esgotamento, para o carro, abandona o filho na calçada, volta pro carro e segue seu caminho. Minutos depois, se arrepende e volta, mas ele não está mais lá. Uma mulher exausta, insatisfeita com a posição que precisa desempenhar na maternidade e mesmo que se esforce, se dedique e busque a felicidade, sofre durante todo o processo.


"Há cinco anos, desde que Augusto nasceu, foi obrigada a ser sua mãe. Foi obrigada a amá-lo". Véspera, Carla Madeira

Paralelo a esse drama conhecemos a sogra de Vedina, a Custódia. A mãe do homem que Vedina dividiu a vida e teve esse filho, que acabou de abandonar. A mãe que Custodia foi, sem dúvida, impacta a mãe que Vedina é, uma vez que a maneira como criou seu filho, definiu o marido e pai que ele se tornou. Maternidades entrelaçadas, com suas consequências ecoando por gerações na obra-prima que é Véspera.


Carla Madeira nos diz que somente voltando na véspera dos fatos é possível compreender o que aconteceu. Injusto, porém, é que no exato momento em que esses fatos estão acontecendo, somos incapazes de reconhecer os abismos que eles precedem. Um livro forte que retrata mulheres e mães de uma maneira franca, demonstrando como a criação de um filho determina quem ele vai se tornar. O que, por consequência, vai impactar a criação dos filhos que ele vai ter e assim, por gerações, as atitudes da véspera impactarão o presente dos que estão por vir.


"O fato é que comecei a pensar que tudo que veio antes em minha vida aconteceu para que eu estivesse ali, naquele exato momento. Nem antes, nem depois". Véspera, Carla Madeira

Em Casas Vazias, temos duas mães retratadas de maneira única, expondo em um texto visceral seus sentimentos mais íntimos. A primeira delas é a mãe biológica de Daniel, uma criança autista de 3 anos. Um filho que não foi desejado, fruto de um casamento já falido, mas que recebe o amor e cuidados esperados de uma mãe. Até que um dia, durante um passeio no parque, ao se distrair lendo uma mensagem do amante, Daniel é raptado.


"Não parir, porque depois que nascem, a maternidade é pra sempre". Casas Vazias, Brenda Navarro.

Acontecimento que faz verter das páginas do livro a culpa que essa mulher carregará por toda a história. Não só por ter o filho sequestrado por uma distração sua, mas pelo motivo da sua distração. Naquele instante ela cometeu um pecado duplo e suas atitudes como mulher são imediatamente vinculadas às suas atitudes como mãe. Na sua consciência só há culpa e vergonha, acompanhados pelo constante medo do que pode ter acontecido com seu filho.


"Eu não mereço respirar. Respiro. Minha condenação é respirar". Casas Vazias, Brenda Navarro.

Esses pensamentos não são infundados, ela sabe como seria julgada se alguém descobrisse o que estava fazendo no momento do rapto, sabe também o que as pessoas pensariam se soubessem o quanto ela teve de se esforçar para aceitar a gestação, ser uma boa mãe e amar aquele filho. Afirmações um tanto duras de ler, principalmente porque não estamos acostumados a ver uma mãe falando dessa forma sobre um filho.


Entretanto, os sentimentos relatados por ela, apesar de fortes, são compreensíveis dentro do contexto que ela vive. Essas confissões em pensamento, que só o leitor tem acesso, também demonstram o quão humana ela segue sendo, com suas falhas, dúvidas, arrependimentos. Mostrando que ao se tornar mãe ela não se transformou em um ser divino, livre de falhas e sentimentos ruins.

"Por que sinto tanto e por que os outros não? O que os faz especiais?, que jogada de dados foi a deles para terem uma vida normal?" Casas Vazias, Brenda Navarro.

A sequestradora, é a outra protagonista e se tornará a nova mãe de Daniel, que aos seus cuidados passa a se chamar Leonel. Uma mãe construída num contexto de traumas, violência, abusos e muita pobreza, não só financeira, mas de valores, base familiar e referências. Novamente os efeitos da maternidade ecoam por gerações, neste caso uma mulher que deseja ser mãe para criar o filho de uma forma diferente da qual foi criada.

"Eu queria educar uma menina que fosse diferente de mim, da minha mãe, da mãe de Rafael, das minhas primas. Uma mulherzinha diferente, que não dependesse de ninguém, mas que fosse amorosa; por que isso era ruim?"  Casas Vazias, Brenda Navarro.

Esse desejo de encerrar um ciclo ruim e começar uma nova história é muito tocante, mostra a capacidade de resiliência e quanto amor e afeto existe no coração dessa mulher que foi tão maltratada pela vida. Porém, infelizmente fica evidente que ela não tem condições para fazer isso.


Seus valores, entendimento do que é certo e errado, limites e estrutura familiar foram distorcidos de tal forma que para ela é aceitável raptar uma criança, simplesmente porque ela quer ser mãe.


Ao narrar a dor de uma mãe que procura o filho e a mãe que escolheu seu filho, Brenda Navarro coloca essas mulheres como Casas Vazias, que existem e vivem como podem, com pessoas entrando e saindo, as usando como abrigo ou cenário de abusos e violências. Mas no fim, todos vão embora e elas continuam ali, esperando ser úteis mais uma vez.


"Não existe palavra que defina uma mãe sem um filho que ela já pariu, porque não sou amátrida, já que Daniel continua vivo e eu sou sua mãe, sou algo pior, algo inominável, algo que não foi conceitualizado, algo que só o silêncio torna suportável". Casas Vazias, Brenda Navarro.

Relatos fortes e honestos

Como essas mulheres são retratadas mostra maternidades possíveis em cada circunstância, ao invés da já desgastada maternidade romantizada. Nessas histórias ouvimos relatos íntimos em momentos de maior esgotamento físico e mental diante do dever incessante de ser mãe.


Em pensamento, elas se arrependem da escolha que fizeram, admitem não querer estar ali e acham muito penoso ter que ser amorosa, generosa, compreensiva e forte quando só queriam sumir. Nas suas atitudes elas erram, agem por impulsividade e nem sempre conseguem reparar as consequências do que fizeram.


Enxergar essas histórias através do fluxo de pensamento dessas mulheres (no caso de Casas Vazias) e da perspectiva das protagonistas mulheres utilizada pelo narrador (no caso de Véspera), gera empatia nos permitindo acolher falhas humanas ao invés de julgar. Também fazem pensar sobre o quão danoso pode ser requisitar que mulheres se tornem mães, quando não querem ou não podem. Ou ainda, quando vivem em realidades familiares extremamente difíceis e problemáticas, fazendo com que a chegada de um filho não seja uma alegria, mas sim, mais um problema.


Uma sociedade que define o valor ou lugar da mulher enquanto genitora exige não só a procriação da espécie, mas espera que essa mãe ame, eduque, seja exemplo para um novo ser humano, tão complexo quanto ela. Na realidade que vivemos, esse peso fica geralmente com a mãe, que nem sempre pode contar com a presença do pai.



Yuval Harari, autor de Sapiens, relata que nos primórdios da nossa espécie, uma das mudanças mais significativas da mulher foi a adaptação do seu corpo para conseguir suportar uma gestação completa para dar à luz a filhos totalmente formados e com mais chances de sobrevivência.


A partir disso, ele afirma: "É necessária uma tribo para criar uma criança". Tribo, família, rede de apoio tanto faz o nome, importa mais é saber que seres humanos, diferentes de outros mamíferos, nascem muito dependentes e só conseguem sobreviver nos seus primeiros anos de vida se forem cuidados, alimentados e protegidos.


As redes de apoio retratadas na literatura contemporânea

O que nos leva para outro aspecto dessas obras: como a família, em especial os personagens masculinos, estão retratados nessas histórias. Pais, maridos, filhos, irmãos aparecem como protagonistas na causa dos problemas, e como coadjuvantes da resolução. Homens que diante dos dramas dos enredos se mostram resignados ao sofrimento, se distanciam conformados ou até, despreocupados.


Em Casas Vazias, a dor, sofrimento, dúvidas e angústias desses homens não estão em evidência, eles realmente ficam em segundo plano e o pensamento que fica é se a escritora Brenda Navarro quis representar com isso aspectos da realidade. Em que a maioria das paternidades não chegam a ser funcionais em um cotidiano comum, imagina em um contexto catastrófico como o da história. Evidenciando como as exigências e responsabilidades caem naturalmente sobre as mães.


Já em Véspera, Custódia tem gêmeos, dois meninos criados de uma maneira muito questionável por essa mãe superprotetora, possessiva e fervorosamente religiosa. Mesmo eles sendo personagens centrais na história, a relação dos irmãos, desde a infância até a adolescência, é narrada muito mais da perspectiva de como a mãe os tratava e conduzia suas vidas, do que de como eles se sentiam e se viam.


Essa escolha de narrativa, de Carla Madeira, dá novamente protagonismo à perspectiva feminina, a história que importa é a da maternidade dessa mãe completamente decidida a controlar o destino dos filhos. Mostrando como se via como única responsável por aqueles filhos, fato que se repete quando Vedina se sente a única culpada pelo abandono do filho. Elas não consideram todos os acontecimentos que as levaram até ali, apenas sentem culpa e a necessidade de resolver tudo.


Os filhos de Custódia crescem, apesar dos traumas, dores e dificuldades e se tornam maridos e pais. Nessa fase, Abel, um dos gêmeos e pai do filho abandonado por Vedina, tem sua paternidade descrita como amorosa, ele não saía e chegava em casa sem dar um beijo no filho, um dos raros momentos que sorria era olhando o filho dormir e por aí vai. Uma paternidade muito parecida com a que vivenciou em casa, já que na sua infância o pai chegava e ia direto dar um beijo nele e no irmão.


Apesar dos gestos afetuosos, vemos pouco esses pais agindo ou se preocupando com a educação e criação dos filhos. Inclusive, fica a questão do quanto a descrição dessas atitudes carinhosas não buscam demonstrar que apesar desse pai ser como é, ainda lhe resta um coração. Será essa uma tentativa de colocar um pouco de humanidade nesse homem que podemos compreender como o ponto central dos principais dilemas da história?


Ou então, será que essa é a forma com que comumente as pessoas avaliam ser um bom pai? Ele é carinhoso, leva o filho pra passear e traz presentes. Mas e o dia a dia, nas tarefas diárias mais pesadas ou nas decisões mais complicadas, onde estão esses pais? Isso soa quase como uma frase popular, bastante antiga e machista que diz: "Ele é um bom marido, nem me bate!".


Fica, portanto, a reflexão sobre os diferentes pesos impostos aos pais e as mães, na realidade em que mães solos lutam diariamente pela criação e educação de filhos, que não conceberam sozinhas, mas que foram facilmente abandonados por seus pais.


As escolhas da narrativa

A maneira com que Carla Madeira e Brenda Navarro construíram suas personagens, causa espanto, polêmica e estranhamento. O ângulo que escolheram para contar a história dessas mães dá liberdade e valoriza o ponto de vista feminino. Estratégias que podem ter sido escolhidas para chamar atenção para questões caladas da maternidade.


Fica claro que não há filtro ou amarras que prendam uma mulher que está sendo retratada por outra mulher. Afinal, ninguém poderia descrever melhor essa condição, mesmo não tendo vivido na pele, transpondo com tamanha riqueza certas emoções e atitudes, por mais controversas que sejam.


Evidente também a necessidade de termos mais narrativas nesse formato. Quanto mais complexas e diversas forem as histórias literárias femininas, mais conseguiremos desenvolver empatia e compaixão por diferentes trajetórias. Compreendo não haver uma única forma de existir e maternar, como também não cabe só a mulher essa função.


A literatura é também poderosa nesse aspecto, nos faz pensar e expandir o olhar para problemas que talvez não vivemos, mas que existem. E como corresponsáveis na construção de uma sociedade mais justa, diversa e menos patriarcal, ler mulheres que escrevem sobre mulheres fora dos padrões, é um importante passo.


Que a trajetória dessas escritoras não encontre barreiras, filtros ou limitações. Que o pudor saia de cena dando mais espaço para histórias reais, que marcam profundamente e nos fazem ficar pensando por dias.


Leia mulheres!


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Obrigada por ler! 🤓

Espero que tenha gostado e se inspirado a ler o livro.

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Nos vemos no próximo texto 🥰



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